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Uma conceitualização de desejo a partir da “Ética” de Spinoza*

  • Foto do escritor: Fauzy Araujo
    Fauzy Araujo
  • 28 de mai.
  • 11 min de leitura
"No importa. El hechicero insiste y labra
a Dios con geometría delicada;
desde su enfermedad, desde su nada (...)".
(Jorge Luis Borges, em Baruch Spinoza, 1976)

Na psicanálise lacaniana, um dos conceitos que se destacam nas teorizações do psicanalista francês é o conceito de desejo. O desejo é um tema para o campo psicanalítico desde seus primórdios, onde foi abordado por Freud, seja pela via da sexualidade e sua relação com a sintomatologia das neuroses, ou a partir da sua conhecida hipótese de que o sonho é a realização de um desejo. Neste sentido, podemos considerar que as questões acerca do desejo têm sido objeto de interesse de nossa disciplina desde sua criação, passando pelos desenvolvimentos lacanianos e de como atualmente dedicamos nossas pesquisas sobre um conceito que demanda diversas construções teóricas e clínicas, considerando a variabilidade de referências que o concebe.

Ainda que seja de nosso interesse e a terminologia “desejo” faça parte de nossa rede de unidades epistêmicas, as ideias que sustentam uma noção de desejo, particularmente articulada à psicanálise, não têm uma origem neste campo. Quer dizer, o conceito de desejo não é de origem psicanalítica, senão uma contribuição da filosofia que aporta diversas definições enquanto disciplina com afinidade ao campo psicanalítico.

Em uma leitura genealógica, um método conhecido e abordado nas teorias de Foucault e Nietzsche, podemos entender que um conceito é uma operatória do simbólico sobre o real, que é compreendido a partir de uma redução, uma literalização que corresponde a uma resposta a um impossível que surge no campo da verdade [1]. Considerando essa metodologia, os conceitos surgem de forma dispersa, ou seja, como uma dispersão de referências acerca de uma unidade, e propor uma genealogia sobre um conceito é pensar em sua emergência na história – um exemplo clássico e relevante para a forma como pensamos a ciência é a emergência do “eu penso” de Descartes, que inaugura o sujeito da ciência moderna. Desta forma, genealogicamente, não nos interessa a busca de um conceito último, uma única origem, senão a dispersão que corresponde à literalização da unidade conceitual de determinado campo e suas utilizações particulares.

Seguindo essa lógica, o conceito de desejo, tal qual como o conhecemos, no contexto da psicanálise lacaniana, é uma construção que parte da filosofia e que está baseada em diferentes noções e/ou teorizações do conceito de ética. No ensino de Lacan podemos identificar diferentes concepções sobre o desejo e que muitas delas estão ligadas à “Ética a Nicômaco” de Aristóteles, ao imperativo categórico de Kant, à dialética de Hegel e à “Ética” de Spinoza.

Neste trabalho, me dedico a pensar algumas ideias a partir da “Ética” de Spinoza e suas repercussões na noção de desejo trabalhada na psicanálise lacaniana, compreendendo que Spinoza é uma referência imprescindível em uma genealogia deste conceito.

Para compreender a relação do desejo com a ética, temos que distanciar-nos da ideia de ética como sinônimo de moral ou um conjunto de regras a serem seguidas de forma arbitrária. A ética, a partir da filosofia, deve ser entendida a partir do termo “ethos” que se refere às atitudes, os valores e os hábitos que constituem as características do homem em sua relação com a comunidade. Ou seja, a ética como aquilo que constitui o caráter e suas formas de habitar o mundo, sem o peso que geralmente estamos acostumados a pensá-la em nossos ideais judaico-cristãos.

Tomando a ética neste sentido, a proposta de ética em Spinoza vai ser uma ética dos afetos, ou seja, de pensar em como as ações humanas são baseadas em uma noção de como somos afetados pela natureza – por isso ele começa seu trabalho definindo [2] o que seria Deus e suas características como natureza – e nossos atos são respostas afetivas a esse domínio do natural. Não se pode pensar em uma ética sem considerar os afetos, que são eles que introduzem a pergunta “o que devo fazer?”, uma questão cotidiana na clínica e crucial para pensar o desejo como consequência teórica da filosofia, uma noção de desejo mais localizada na ação que no fim objetal (Spinoza, 2009).

Para esse filósofo, o desejo é herdeiro da experiência de satisfação, é a essência da condição humana, em uma oposição entre dois afetos cruciais: a tristeza e a alegria. É uma teorização sobre as paixões e sua divisão entre as paixões tristes e alegres, que se refere a como os afetos são responsáveis por organizar as formas de atuar na existência.

A tristeza é a possibilidade do ser em não estar de acordo com um modo de atuação, quer dizer, é uma insatisfação sobre sua forma ética de se estabelecer no mundo, sobre a conduta, sobre a forma como se relaciona com a comunidade.

Por outro lado, a paixão alegre seria a possibilidade da ação, ou seja, do movimento como forma de afirmar a potência. As paixões tristes são sempre próprias da impotência e se estabelecem como uma forma de barrar as ações. As paixões tristes nos tornam escravos, não há desejo, é uma forma de experimentar a existência sem ser afetado por aquilo que corresponde à essência, mas que deriva do exterior – da natureza, em seus termos.

Deleuze (2004) aponta que Spinoza, a partir de uma proposta substancialista [3], faz uma tripla denúncia acerca da consciência, dos valores e das paixões tristes, onde o corpo é um ponto de partida e não sabemos disso, e a palavra é o que vem depois. Seu interesse está nas questões do corpo e da alma, propondo um paralelismo que entende uma ausência de supremacia entre essas duas dimensões, ainda que haja um destaque e um interesse do autor por um desconhecido do corpo, uma proposta teórica em afinidade com a psicanálise.

Spinoza define o desejo como o apetite com consciência de si e é a essência mesma do homem. Para isso, a ética vai ser uma compreensão acerca do uso dessa essência, uma forma de substituir a moral que compartilha as coisas entre bem e mal, como substantivos, e sugere que haja uma leitura das qualidades dos modos de existência. É uma passagem do bem-mal para o bom-mau.

Então, a concepção de desejo que podemos tomar a partir da ética spinoziana é que as paixões alegres como potência é que implicam pensar que a ética do mestre é uma ilusão de domínio, são atos contrários à possibilidade de movimento e que o desejo não pode inscrever-se como uma condição humana.

Lacan, ao considerar essa concepção do desejo, faz uma manobra de mudar o estatuto ontológico acerca daquilo que será substancial no homem [4]. Spinoza parte de uma visão dualista, ainda que com avanços e sem hierarquizar, compreende que há uma diferença entre aquilo que é do corpo e aquilo que é da alma. Sua ética não comporta uma supremacia entre essas duas dimensões. No entanto, parte de uma proposta substancialista. O trabalho de Lacan é o de compreender as categorias do ser em termos de linguagem. Não há realidade que não seja de linguagem, de forma que toda substância que adquire um status de conceito acerca do falante é de natureza significante. O paradigma lacaniano é o de tomar o desejo em uma operação linguistérica, para que tais referências sirvam à particularidade do campo psicanalítico (Lacan, 1972).

Lacan (1964) ao apontar que também toma para sua teoria a ideia de Spinoza de que o desejo é a essência do homem, considera que essa essência somente pode ser compreendida se esse desejo se institui em uma relação radical da universalidade dos atributos divinos, atributos esses já entendidos e que somente podem ser pensados a partir da função do significante. Assim, o desejo é algo que parte de uma articulação própria do campo da linguagem e o que está posto como atributo divino é resultado da realidade, ou seja, em termos lacanianos: do Outro, que institui o inconsciente como realidade discursiva. O que há de divino no desejo, já rompendo com Spinoza, é que ele é do Outro (A).

Por isso, quando dizemos em psicanálise que nosso sujeito é um sujeito do desejo e que está representado de um significante para outro significante, estamos considerando que o desejo é uma estrutura [5], que por sua vez está sustentado por um fantasma ($♢a) como o que inscreve a impossibilidade da relação deste tema com um objeto não tridimensional, apresenta algo do campo de um conflito. A clínica psicanalítica seria uma forma de tratar – já que as neuroses são formações que surgem de um conflito a partir do desejo – desse sujeito/tema do desejo que é formado pelos intervalos da cadeia significante.

O diagnóstico lacaniano é que, até a descoberta de Freud, o desejo estava isolado das considerações do sujeito moderno. É com a proposta freudiana de psicanalisar que tivemos a formulação de um método que considera o desejo e esse volta a ser tomado como essência do sujeito (Lacan, 1962a). Já não é compreendido como essência divina, mas como aquilo que não é suturado e a psicanálise se ocupa de uma operatória sobre a divisão que o constitui (Lacan, 1966).

Em outro momento, em seu “Seminário 14”, onde se dedica a pensar “A lógica do fantasma”, condição para o desejo, o francês volta a pensar a partir de Spinoza, considerando que tudo aquilo que se refere às relações entre o corpo e a alma está no nível do Outro. Isso ocorre a partir do afeto da alegria, apontado por Spinoza como o efeito do movimento. Quer dizer, o desejo é potência, movimento, uma constante e não um resultado da tentativa de encontrar um objeto que fecha o ato de desejar. Essa é uma visão muito particular da psicanálise, que propõe o desejo como uma constante.

Em outro momento, Lacan (1962b) já tinha proposto que o desejo é resultado de uma operação de divisão. Distanciando-se de ideais imaginários, de tomar ao desejo como simplesmente fazer o que quer, que seria o mesmo de uma autonomia. O desejo é abordado de forma lógica, sob o paradigma da linguagem e como uma possibilidade de situar a condução de um processo analítico. A ideia de desejo é proposta, neste contexto, como uma divisão que localiza o sujeito e o Outro em uma relação que depende da barra nestas duas dimensões. Isso se escreve com o seguinte esquema:


No esquema, temos de um lado o campo do Outro (A) e em oposição o campo do sujeito (S), ambos sem a barra que os divide. A condição para localizar algo do desejo é que, no campo do Outro, o sujeito apareça barrado ($) e, por consequência, o Outro no campo do sujeito se constitua como inconsciente (Ⱥ). O resultado dessa divisão é o objeto (a) como resto que se compõe do lado do Outro, que inscreve a causa do desejo. O $ e o a do mesmo lado, é o que formula o fantasma ($♢a), denotando que todo desejo é fantasmático.

A partir disso, podemos considerar a seguinte digressão acerca do esquema da divisão:


Se todo desejo é fantasmático, é porque estão do lado do Outro, o sujeito e o objeto, onde podemos localizar a máxima lacaniana de que o desejo é o desejo do Outro. Não porque não desejamos, senão porque tudo o que podemos desejar advém desse lugar. O que acessamos dessa dimensão é o a, o objeto causa do desejo, que não é um objeto da realidade e sim a inscrição da falta, da compreensão do desejo como incompleto e que não se esgota em uma relação de objeto em três dimensões.

Uma das referências usadas por Lacan para essa ideia é hegeliana, quer dizer, de tomar o desejo como dialético. No entanto, ainda que baseado nas ideias de Hegel, compreendemos que a própria noção de desejo como movimento – que não se esgota em um objeto da realidade – e que a essência do homem é o desejo – um sujeito do desejo – é uma ideia fundamental que se apresenta na ética de Spinoza. Assim podemos situar a própria noção genealógica, onde um conceito não parte de uma referência última, mas que está proposto em uma dispersão de seus fundamentos e que ao constituir-se como unidade, é um resultado que coaduna com determinado campo, assim como em algum momento da história, outros conceitos de desejo podem surgir, inclusive considerando a referência psicanalítica.

Ainda sobre a divisão referente ao desejo, vale apontar que esse esquema é notado em um seminário onde Lacan está trabalhando o tema da angústia como um afeto que é totalmente lido a partir de uma teoria acerca do desejo. Sua proposta é que o traço unário é uma introdução do significante antes da própria existência do sujeito, que ocorre a partir do Outro (A) e, em uma análise, nosso trabalho é o de localizar o desejo do Outro no discurso que se apresenta.

É assim que consideramos que a ética da psicanálise é uma ética do desejo – já compreendendo ética não como um código, mas como uma noção filosófica acerca do que move as ações humanas – porque diferente da ética do psicanalista, a ética da psicanálise como ética do desejo é o que possibilita a manobra clínica de estabelecer o lugar determinante da posição do sujeito no campo do Outro e direcionar o tratamento para a extração desse objeto que é resultado de um trabalho simbólico.

Lacan se dedica a pensar esse trabalho ao tomar a ética do desejo como uma possibilidade de interpretar. Ao propor uma paráfrase com a obra freudiana que inaugura a primeira tópica, propõe “O desejo e sua interpretação”, considerando que estaríamos operando em uma estrutura, sendo que o desejo já é uma interpretação acerca da realidade e que está posto na superfície do discurso, ou seja, no registro da fala. A ética aqui seria uma intervenção que se refere à interpretação desse desejo, sob a condição clínica da transferência, sendo o que possibilita a construção de um saber.

A condução de uma análise consiste em localizar, no registro da fala, a dimensão própria do dizer, a um discurso preexistente e o sintoma é uma interpretação acerca desse discurso que procede como uma discordância para o sujeito. O psicanalista estaria como aquele que extrai o objeto a, conceito chave para pensar o desejo em Lacan, que consiste na dimensão do não representável, que é mais do campo do vazio que do sentido. Isso propõe uma clínica que abole as perspectivas subjetivistas do desejo e segue rumo a pensar em como um sujeito é causado como desejante e que objeto foi no desejo do Outro.

Essa é uma leitura que tem todo potencial de apontar para uma subversão, já que propõe que a psicanálise seja um tratamento que procede como forma de abordar ao sujeito como fracasso da norma. Sugere que nosso trabalho clínico consista em não adaptar, tampouco proceder como uma prática que conserta os sintomas de alguém, mas sim em sustentar a divergência constante que experimentamos na relação que estabelecemos com o inconsciente, o próprio discurso do Outro.

Com essa leitura que aponta para uma genealogia do desejo e suas diferentes referências na história, podemos extrair da “Ética” de Spinoza, uma contribuição que se desenvolve no ensino de Lacan como forma de estabelecer uma teoria para os afetos e de como podemos tratar do tema do desejo sem aderir a propostas ontológicas que o articulam como subjetivista. Algo que tem consequências teóricas e clínicas, propondo desenvolvimentos consideráveis às formas de tratamento em psicanálise.


Referências

Deleuze, G. (2004). Spinoza: filosofía práctica. Buenos Aires: Tusquets. 

Lacan, J. (1962a). O seminário, livro 9: A identificação. Inédito. Centro de Estudos Freudianos de Recife.

Lacan, J. (1962b). Seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005.

Lacan, J. (1964). El seminario de Jacques Lacan: libro 11: los cuatro conceptos fundamentales del psicoanálisis. Buenos Aires: Paidós, 2008.

Lacan, J. (1966). La ciencia y la verdad. In: Escritos 2. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2014.

Lacan, J. (1966/1967). O seminário, livro 14: A lógica do fantasma. Inédito. Centro de Estudos Freudianos de Recife.

Lacan, J. (1972). O seminário, livro 20: mais, ainda. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.

Spinoza, B. (2009). Ética. Belo Horizonte: Autêntica Editora. 


Notas:

* Trabalho apresentado ao “Seminário sobre temas interdisciplinares” do mestrado em psicanálise da Universidade de Buenos Aires, em novembro de 2024.

[1] Aqui considero o conceito de “verdade” como “aletheia”, em sua diferenciação de outros termos presentes na filosofia grega clássica, como “opinião” (doxa) e saber (episteme), que consistem em diferentes operações no que se refere ao discurso científico moderno.

[2] Um dado interessante é que essa obra de Spinoza é escrita de maneira totalmente formal, utilizando-se do discurso lógico para sustentar suas teorizações através de proposições que levam a raciocínios não contraditórios e com o maior nível de rigor racional possível.

[3] Ainda que Spinoza seja visto como aquele que, diferente de Descartes, reiterou o fator relacional entre as substâncias, também adere a um dualismo, ainda que em termos diferentes e que propõe uma harmonia entre tais dimensões.

[4] Para nós, lacanianos: falasser.

[5] Assim podemos distanciar-nos da ideia de desejo como vontade de algum objeto, diferenciando da demanda.

 
 
 

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